10/12/2024
REFLEXÕES SOBRE A ESPERANÇA
Por Laura Gonçalves de Lima
Desde 2023 integro a equipe do Vida e Juventude qualificando os dados produzidos pela execução do Núcleo Técnico Federal do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (NTF/PPCAAM). Hoje, a convite do Vida e Juventude e em comemoração do Dia Internacional de Direitos Humanos, 10 de dezembro, compartilho com vocês algumas das reflexões que atravessam meu cotidiano – não apenas meu cotidiano profissional, mas, sobretudo, meu cotidiano enquanto brasileira a quem é dado testemunhar, com alguma proximidade, as jornadas heroicas protagonizada por algumas de nossas crianças e adolescentes para sobreviver a nossa sociedade.
Walter Benjamin uma vez escreveu, de maneira muito bonita, sobre a existência de uma força messiânica que nos liga, geração presente, às gerações passadas. De uma forma singela, podemos dizer que o filósofo alemão sugeria que todas nós fomos esperadas; que nós somos a materialização dos sonhos de nossas ancestrais, que nos geraram, que nos aguardaram, nos nomearam, nos alimentaram, nos criaram e superaram inúmeras adversidades e obstáculos para que nós pudéssemos existir sobre este território. Essa é uma imagem ainda mais poderosa quando olhamos para crianças e adolescentes. “O futuro da nação”, diz o senso comum. Contudo, no Brasil, esse futuro é seletivo.
Atravessado pelo trauma social e secular da escravização e da colonização, o imaginário coletivo brasileiro abriga um espaço perverso que sufoca muitas de nossas crianças e de nossos adolescentes. O que nos contam os dados estatísticos sobre letalidade contra crianças e adolescentes no Brasil? Meninos negros são a maioria entre as vítimas em todas as faixas etárias, porém, quanto mais velho, maior a desproporção. Segundo o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil (UNICEF e FBSP, 2021), “na fase da vida em que ocorre a maior parte das mortes – 15 a 19 anos –, meninos negros são quatro em cada cinco vítimas”. Não há como olhar para a realidade retratada por esses dados e não refletir sobre o que significa se tornar um jovem negro no Brasil.
Ser uma criança e um adolescente negro em nossa sociedade é, entre tantas outras coisas que escapam aos enquadramentos perversos do racismo, ir tomando consciência de que sua existência é contextualizada por rejeições sistemáticas, é aprender a conviver com pessoas que entendem a sua vulnerabilidade como ameaça, a sobreviver em um mundo regido por uma lógica em que a sua morte é profetizada e desejada, ou seja, é encontrar jeito de dissociar seu valor e sua autoestima da rejeição e do desejo de morte projetados sobre eles pelo mesmo senso comum que diz que crianças e adolescentes são o futuro da nação. São toneladas de história pressionando corpos muito pequenos, que vivem entre tantas ameaças.
No PPCAAM, testemunhamos as formas cruéis mediante as quais essas ameaças se materializam na caminhada desses meninos e meninas. Testemunhamos, também, a capacidade impressionante essas crianças e adolescentes desenvolveram de separar a sua individualidade desse regime de violações e negligências e de amar, a si mesmo e aos outros, apesar de tanta rejeição. Testemunhamos, ainda, crianças e adolescentes adotarem estratégias de dissociação precárias e precarizantes como a cocaína, o crack, a automutilação ou a própria violência – estratégias que, com muita tristeza, escuto e compreendo.
Quando uma criança ou um adolescente ameaçado encontra o PPCAAM, nós ouvimos sua história, avaliamos riscos e acordamos uma série de regras para que a proteção seja eficaz e sustentável. Não fui capaz, ainda, de me separar dessa sensação de que é cruel e incoerente pedir para uma criança ou um adolescente imaginar um destino, um futuro, ter confiança ou esperança quando se é constantemente atravessado por violações de todas as formas. Nesses momentos eu preciso me recordar de que boa parte do trabalho para a efetivação dos Direitos Humanos é reconhecer e nomear as crueldades e as incoerências do mundo em que vivemos e encontrar caminhos para transformá-las. Sendo a única política pública que nomeia, sem nenhum tipo de eufemismo, a realidade desses que outrora eram chamados “menores” – crianças e adolescentes ameaçados de morte –, o PPCAAM é uma conquista com um potencial tremendo de transformação da cidadania brasileira.
Eu sou muito grata ao Vida pela oportunidade de poder trabalhar com essas crianças e esses adolescentes e espero que este programa exista e se desenvolva, ainda, por muitos e muitos anos. Parece um contrassenso, uma vez que a existência do PPCAAM sublinha a existência de crianças e adolescentes ameaçados de morte em nossa sociedade; mas quem testemunha as dinâmicas das violações cotidianas, sabe que não há tempo e nem espaço para ingenuidade. Mais do que apenas proteção, o PPCAAM garante recursos materiais para que nós, membros da sociedade civil que executamos o programa, possamos encontrar esses meninos e meninas e contar para eles que, apesar de tudo, de tudo o que é tão difícil de narrar e que te trouxe até aqui, apesar de todos e de toda a rejeição que vocês experimentaram, apesar de tanto, nós te esperamos. Que você, aqui, vivo, já é materialização da nossa esperança.
Eu achei que escreveria essas reflexões para falar justamente sobre como foi surpreendente e poderoso aprender a reconhecer que cada uma dessas crianças e desses adolescentes davam forma a nossa esperança, mas, recentemente, tivemos contato com uma carta escrita por uma adolescente protegida do PPCAAM. A carta foi escrita como um pedido de desculpas e uma tentativa de explicação de sua escolha. Nela, ela nos conta da saudade que sentia de sua terra, do que lhe era familiar; que agora ela deixava de ser uma protegida para ser uma “foragida”; que ela não saberia o que iria acontecer com ela quando ela completasse 18 anos; dizia ter medo, sempre, mas dizia que também sabia que era forte, ela já tinha sobrevivido a tanto; dizia que ouviu dizer que quem nasce para o tráfico, morre pelo tráfico e que era a hora dela enfrentar o seu destino. Pediu desculpas, agradeceu e se despediu.
Como eu não consigo deixar de pensar nessa carta, quero usar dessa oportunidade para responder, publicamente, para essa adolescente, e dizer que eu admiro, muito, a sua coragem; que você não precisa se desculpar por escolher viver seus desejos, apesar dos riscos; que te encontrar e contribuir para aliviar, que seja um pouco, o fardo que é ser uma adolescente negra nesse país, era o nosso desejo; que eu sinto muito que você acredite que o tráfico é o seu destino, por que destino, pode até parecer que não, mas muda todo dia; que você é nossa esperança, e que te encontrar – viva, segura e feliz – seria nossa maior alegria.
Hoje, para comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos, gostaria poder contar para essa adolescente que nós sabemos que ela é, sim, muito forte; que reconhecemos o quanto é injusto ter que crescer atravessada por tantas violações e que seguimos trabalhando para que você e todas as crianças e adolescentes ameaçados de morte neste país possam ser apenas crianças e adolescentes; que vocês, vivos, são a nossa esperança de transformação deste presente em um futuro melhor.
Laura Gonçalves de Lima
Cientista Social do NTF/PPCAAM
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ASCOM - Vida e Juventude
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